Round 6 e a luta de todos contra todos como expressão de nosso tempo

21/11/2021 15:28

O fim de 2021 repete o encerramento de 2019 com mais um sucesso global de uma narrativa de uma personagem ingressando em um novo mundo, de regras desconhecidas, e presenciando a disputa mortal entre indivíduos desesperados que raramente se unem. Em 2019 foi o filme espanhol O Poço, em 2021 a série sul coreana Round 6.

Round 6 é a série mais assistida na história da Netflix

Além dessas produções, outras já haviam abordado esta temática, como a franquia Jogos Vorazes (2012-2015), além de jogos eletrônicos do tipo battle royale, em que personagens se eliminam até a vitória de um único jogador ou time.

Há cerca de uma década, portanto, a luta de todos contra todos para um único vencedor é tema central da produção cultural do modo de produção capitalista, variando pouco quanto às características de heróis, anti-heróis e vilões, e alterando pouco também quanto ao universo: geralmente um futuro próximo, ou mesmo o presente.

Battle royale, tema central da última década

Diferente das distopias dos anos 1980 e 1990, mais marginais, cult  e ligadas à extinção da vida humana, os battle royale da indústria cultural desses últimos anos reforçam a luta de indivíduos isolados contra uma sistema corrupto controlado por alguns poucos sujeitos e seguido por indivíduos desesperados e ignorantes até a aparição de alguém que decide não seguir as regras de lutar contra todos, como acontece em Jogos Vorazes, Maze Runner, Divergente, Expresso do Amanhã, 3%, O Poço, e agora Round 6, para ficarmos somente nos mais populares exemplos.

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É verdade que nem sempre a mera recusa é suficiente e o indivíduo esmagado pelo “sistema” é um final possível, mas chama atenção a manutenção da dinâmica de um mundo controlado por uns poucos que submetem uma maioria a se matar para terem acesso ao mínimo. Na maioria das vezes, a escassez é artificial, fruto da acumulação de riqueza por uma “elite”, mas não é raro que haja escassez efetiva e a produção meramente defenda uma saída de distribuição da miséria coletivamente ou mesmo não veja saída, como em O Poço, que é uma produção com teor crítico mais antissocialista do que anticapitalista.

No geral, no entanto, observamos o crescimento da produção cultural que denuncia uma superconcentração de riqueza na mão de uns poucos perversos e uma massa de miseráveis ignorantes que participam da disputa mortal para obterem o mínimo para se manterem vivos. Tudo muda quando há a aparição de uma personagem divergente que decide não participar do jogo e altera esse cenário, como ocorre em todas as produções citadas.

Para entendermos o sucesso de uma produção cultural, entretanto, é indispensável analisarmos o que há de identificação possível a ser gerada em seus espectadores. Para isso, portanto, façamos um pequeno recuo para o que há de competição mortal no modo de produção capitalista.

Battle royale e ascensão social no modo de produção capitalista

O modo de produção capitalista é, sem dúvida, o fundamento de muitos dos males que vivemos, mas é também o fundamento de muitas conquistas, e uma delas é de ser o primeiro modo de produção com classes sociais em que há razoável mobilidade social. Ou seja, todos os demais modos de produção com classes sociais condenavam praticamente todos os indivíduos a nascerem e morrerem na mesma classe – com exceções pontuais, como a renovação do clero no feudalismo, por exemplo.

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No modo de produção capitalista há, ainda que pequena, alguma mobilidade. Esportistas e artistas nascidos no seio da classe trabalhadora ou mesmo camponesa podem se tornar grandes burgueses, proprietários de marcas próprias e com renda para vida de luxo. São poucos, mas muitos mais que em qualquer outra sociedade de classes.

Esses muitos mais, todavia, são, proporcionalmente, pouquíssimos, e são alardeados como possuidores de grande talento ou mérito, ainda que a maioria se torne, efetivamente, meros capitalistas proprietários de muitas marcas próprias e que transformem seus salários, muitas vezes elevadíssimos, como o de atletas de esportes populares, em capital a ser investido em fundos de investimentos e empresas próprias.

Em todos esses poucos meios de mobilidade social há, portanto, uma luta mortal de uns contra os outros para chegar aos lugares de acesso a esta renda a ser transformada em capital, seja em meios artísticos, esportivos, reality shows, ou nas ilusórias ideologias empreendedoras ou mesmo em alguns concursos públicos, etc.

A mobilidade do modo de produção capitalista permite, dessa forma, que um sujeito nascido em uma classe subalterna ascenda à classe dominante, mas, para isso, é indispensável eliminar muitos pelo caminho.

Battle royale e manutenção da vida no modo de produção capitalista

O modo de produção capitalista, contudo, não é marcado somente pela disputa de possível mobilidade social. Na verdade, o modo de produção capitalista é marcado pela constante luta de todos contra todos também no seio de cada classe. Há, portanto, não somente disputa para ascensão social, mas para manutenção na mesma classe, algo também inexistente como regra nos outros modos de produção.

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Pensemos na classe trabalhadora: os sujeitos que compõem esta classe estão desprovidos de matérias-primas, terra e meios de produção para produção da vida, todos transformados em mercadorias que são adquiridas pela classe capitalista. Não lhes restando opções para produzirem a própria vida a não ser venderem sua força de trabalho aos capitalistas que agrupam esses meios de produção e que produzem os meios de vida com que os trabalhadores se alimentam, vestem, habitam, se locomovem e têm lazer, os trabalhadores disputam entre si os melhores empregos, para terem as melhores condições de produzirem e reproduzirem suas vidas.

Mas não são somente os trabalhadores que disputam entre si a manutenção em sua própria classe. Por ser um modo de produção anárquico, o capitalismo coloca os capitalistas em disputas mortais. Empresas falindo é um fenômeno cotidiano e mesmo as maiores empresas do mundo, convivem todo o dia com os riscos da concorrência intercapitalista, pois o produto que hoje uma produz, pode ser tornar obsoleto pela produção de uma concorrente. Além de produtos, há também a forma de produzir, transportar, comercializar, etc.

Por fim, não podemos deixar de acentuar o papel da pequena burguesia, esta classe entre capitalistas e trabalhadores, que esmaga impiedosa trabalhadores enquanto é arrasada cotidianamente pelos capitalistas.

Esta camada social, composta por diversos sujeitos (a pequena burguesia é muito mais que os donos de pequenos estabelecimentos comerciais, comportando assalariados que não produzem seu próprio salário, por exemplo), por sua posição intermediária na luta de classes, desprovida de uma defesa do capitalismo que lhe esmaga e do socialismo que lhe extingue, vacila entre opções reacionárias e críticas comedidas.

Desde a crise de 2008, a pequena burguesia tem variado do apoio ao reacionarismo fascista que se expande pelo globo terrestre e às críticas bem-comportadas ao modo de produção capitalista.

Assim, por um lado, ameaçam “o sistema” com o fascismo que somente serve ao modo de produção capitalista, esmagando a classe trabalhadora e dando alento à pequena burguesia e seu medo de se proletarizar ou de vivenciar a revolução socialista, e, por outro lado, ameaçam “o sistema” com um ruptura capitalista que nada mais é que uma distribuição da riqueza acumulada pela classe capitalista em direção à pequena burguesia.

Desse modo, o fascismo responde aos medos pequeno-burgueses de se proletarizar – todo fascista está morrendo de medo de tudo: do comunismo, do fim da família tradicional, das mulheres, dos estrangeiros, das vacinas, etc. – e um anticapitalismo romântico, utópico na superfície e conservador no conteúdo. Entre esses dois polos, a pequena burguesia atende aos anseios de ascensão desta classe sem projeto de sociedade para além de seu egoísmo estúpido e suas teorias pseudo-científicas.

Battle royale e capital: o projeto “progressista” pequeno-burguês

Nem toda crítica ao modo de produção capitalista é progressista e os defensores das monarquias nos comprovam todos os dias que o anticapitalismo não é necessariamente revolucionário.

Na série Round 6 – já com segunda temporada anunciada e que promete um dos melhores temas do excelente cinema sul-coreano, a dizer, o tema da vingança – a elite sádica retratada e criticada não constitui necessariamente uma análise anticapitalista, pois todas as classes dominantes assim o foram, basta lembrarmos qual era o espetáculo principal do Coliseu da Antiga Roma, em que escravizados serviam de deleite mortal a imperadores e mesmo ao restante da população liberta.

Round 6 foi a série mais assistida na história em mais de 90 países

Além do mais, a crítica às elites é a base também das teorias mais reacionárias de nosso tempo, como os QAnon e aqueles que combatem os “reptilianos”. Em todas essas hipóteses – tanto as reacionárias, quando as anticapitalistas românticas – é apagada a centralidade da luta de classes, dirigindo a luta contra um inimigo coletivo composto por sujeitos perversos e corruptos, sem ser desvendada a estrutura e as mediações da sociedade como ela efetivamente se organiza. No geral, são “teorias” que se apreende por indignação e medo em menos de uma hora, diferente do que de fato é a complexa estrutura da sociabilidade do modo de produção capitalista.

Nesse sentido, apresentamos neste breve ensaio a hipótese da expressão do projeto anticapitalista romântico de matiz pequeno-burguês na produção cultural da última década, período marcado por grave crise capitalista iniciada em 2007, tornada global em 2008 e que apontou à pequena-burguesia o caminho reacionário fascista por um lado e o anticapitalismo romântico, utópico e conservador por outro.

Na ausência de um projeto revolucionário, é o que temos, mas não nos pertence, como classe trabalhadora. Nada que nos impeça de assistir e ter bons momentos com essa produção cultural de massa, mas não podemos perder o olhar crítico de que o ponto de vista revolucionário não se contenta com essas pequenas denúncias anticapitalistas utópicas. Nosso anticapitalismo é revolucionário e não se reduz ao desmascaramento de “ricos perversos e poderosos” ou a redistribuição de riqueza acumulada, mas aponta ao assalto aos céus e à retomada do meios de produção e condições sociais de existência a todos os seres humanos, pois a escassez capitalista não é uma escassez de riqueza, mas um monopólio de meios de produção a serem socializados.

 


Daniela da Silva Garcia

Gabriel Martins

Matheus Garcia

Tags: anticapitalismoculturaManuscritos Econômico-culturaisRound 6