Quero estudar Marx. Como começo?

15/03/2021 17:38

Essa é uma pergunta bem frequente e que permite muitas respostas. Neste texto, iremos compartilhar alguns textos que consideramos explorar bem aspectos importantes da produção de Marx e Engels, os quais serão apresentados já na sequência a qual sugerimos que a leitura seja feita.

Antes dos textos, porém, é importante salientar que, embora cada um tenha seu ritmo e sua própria trajetória intelectual, estudar acompanhando pode potencializar os estudos, principalmente na companhia de pessoas com um aprofundamento maior no marxismo. “Quebrar a cara” com os estudos da obra original pode ser um bom aprendizado, mas é sempre bom evitar quedas. Ainda, ressaltamos a importância da leitura dos originais de Marx e Engels e não de intérpretes de suas obras, pois, mesmo que esse não seja o caminho mais fácil, ele é, sem dúvidas, o melhor e mais seguro. Afinal, nada melhor para entender o pensamento de Marx do que seus próprios escritos.

Dito isso, a primeira obra que recomendamos é O manifesto comunista. Aqui temos um texto que demonstra de forma magistral a teoria da história desenvolvida pelos cofundadores do socialismo científico. Nesse texto, além de deixar evidente as lutas de classes como motor da história, Marx e Engels colocam a base material da produção da vida, base do seu materialismo, como o fator chave para uma determinada classe se tornar uma classe revolucionária. Nele, existem elementos, como as crises, a situação revolucionária e o programa político que os autores irão desenvolver de forma mais complexa e acabada em obras posteriores, mas isso em nada diminui a importância teórica e histórica do Manifesto.

A segunda obra recomenda é Do socialismo utópico ao socialismo científico de Engels. Esse texto originalmente fazia parte da obra Anti-During, também de Engels, porém, dado a síntese ímpar que produziu do marxismo, acabou sendo lançado como texto autônomo. E de fato: em poucas páginas, conseguimos observar todo o percurso teórico até o ápice da filosofia da revolução. Essa obra consegue também ilustrar a insuficiência teórica do socialismo utópico ao conceber uma sociedade sem contradições por fruto de mentes iluminadas e não como reflexo na consciência de contradições reais que devem ser superadas. Ainda, mostra como a visão idealista da História, mesmo sendo dialética, não permite conceber seres humanos reais produzindo a sua vida materialmente de forma real e que somente uma visão materialista e histórica da realidade, fundada na dialética, permite não apenas compreender e descrever as contradições da realidade, mas superá-la, demonstrando, assim, o fundamento do materialismo histórico-dialético que  permitiu a Marx realizar a sua primeira grande descoberta: que as lutas de classes são o motor da história. Por fim, na última parte do texto, Engels, sintetizando O capital em três parágrafos, mostra a contradição entre o caráter social e anárquico da produção e os fundamentos de suas crises. Dessa forma, por ser uma síntese tão completa do marxismo, essa obra deve ser uma das primeiras a ser lida por quem quer se aprofundar na filosofia dos dois autores.

A terceira indicação é provavelmente a mais densa: a obra A ideologia alemã. Nesse caso, não recomendamos a leitura da obra inteira para quem está dando os primeiros passos nesse pensamento revolucionário e, por isso, recomendamos a leitura do rascunho das páginas 1 a 29 e o rascunho das páginas 30 a 35 do fragmento Feuerbach e História. Apesar da obra não ter sido publicada e ter uma parte do seu conteúdo comprometida por só ter sido encontrada na década de 1930, nesse texto encontramos elementos fundamentais do materialismo histórico-dialético que acompanharão os autores por toda sua produção teórica. Nela é apresentado pela primeira vez o fundamento materialista da história: os seres humanos precisam estar vivos para produzir sua história. Aparentemente essa afirmação parece algo obvio, mas, como já dizia o poeta, vivemos em tempos que o obvio precisa ser dito. A partir da produção material da vida, então, é possível observar como a humanidade produz a si mesma e nesse processo vai criando novas necessidades para serem supridas. Esse processo de produção e reprodução da vida acaba desembocado em uma divisão social do trabalho que, ao separar trabalho espiritual (basicamente dar ordens) e trabalho manual (basicamente executar ordens), proporciona a base material para a divisão da sociedade em classes e a propriedade privada dos meios para se produzir a vida. A partir desse pressuposto materialista, os autores apresentam os primeiros estudos sobre a função do Estado e da Revolução.

A quarta recomendação é um trio de obras, a famosa Trilogia da França (As lutas de classes na França, O 18 de brumário de Luís Bonaparte e A guerra civil na França). A primeira grande característica que nos faz destacar essas obras é que elas são um exemplo prático de Marx colocando o seu método para analisar a realidade concreta. Além disso, é possível ver o amadurecimento teórico do autor e como suas análises foram amadurecendo entre 1848 – data de lançamento do Manifesto – e 1871 – lançamento de Guerra civil. Para além do movimento teórico do autor, essas obras permitem aprofundar na concepção de classes e frações de classes, pois explicita como o fundamento materialista apresentado n’A ideologia alemã está presente na análise da movimentação política das classes e de suas frações, a função do Estado na sociedade capitalista e como sua forma republicana atende às demandas das frações das classes dominantes. Especialmente n’A Guerra civil na França é possível ver os elementos que Marx considera fundamental em uma sociedade que vise superar as relações capitalistas e aniquilar imediatamente o Estado capitalista. Porém, uma dificuldade para estudar essas obras pode ser a necessidade de compreensão do contexto da época e, para suprir isso, recomendamos as obras A era das revoluções e A era do capital do historiador marxista Eric Hobsbawm.

Para finalizar essa introdução, recomendamos a obra Crítica ao programa de Gotha. Nesse texto, que provavelmente é um dos mais ácidos de Marx, é analisado um programa político oriundo da unificação de dois partidos socialistas alemães em 1875. Dessa forma, apontando as insuficiências do programa, é demonstrado como concepções teóricas equivocadas levam a concepções e estratégias políticas equivocadas. Além disso, é apontado a insuficiência do Estado e do direito burguês para atender as demandas da classe trabalhadora. Ainda, essa é mais uma obra que são apresentados alguns elementos de como seria a transição para o comunismo e a função da ditadura do proletariado.

Por fim, a partir dessas leituras, é possível ter uma base para entrar de vez no marxismo e ler a principal obra de Marx: O capital. Não é uma tarefa simples e, por isso, reiteramos a preferência para que o estudo não seja somente individual. O debate, a crítica e a reflexão são passos fundamentais na compreensão do marxismo e a releitura das obras é uma tarefa fundamental para evitar a criação de dogmas. Ressaltamos, dessa forma, que estudar o marxismo demanda uma atividade de estudo e reflexão constante e que conhecer obras, palestras e vídeos de intérpretes auxiliam nesse processo, mas jamais substituem a leitura direta dos autores.