Crítica a programa nenhum

05/10/2020 00:54

Estamos entrando em mais um período eleitoral e, como tem se tornado recorrente nesses períodos, o debate acerca da “unidade das esquerdas” gera calorosos embates no período pré-inscrição de candidaturas. Mas afinal, que unidade seria essa? Uma chapa única para derrotar o bolsonarismo? O início de uma frente contra as reformas ultraliberais? A formação de comitês pró-direitos fundamentais como educação, moradia e saúde? Mas, no último caso, que educação? A universalização do Método Paulo Freire? Aliás, quem ou o que são as esquerdas? Anticapitalistas[1]? Progressistas? Sociais-democratas? Nacionaisdesenvolvimentistas? Socialistas? Anarquistas? Comunistas? Democratas? Trabalhadores? Socialistas pela liberdade? Felipe Neto?

Aparentemente, em todos os casos especulados, a tal da unidade não passa de uma abstração, ou em termos mais utilizados por campos teóricos alinhados com a dita esquerda, é apenas um discurso. Esperamos que o atento leitor não procure nesse espaço respostas prontas ou verdades absolutas. Pretendemos aqui provocá-lo a sair do lugar comum, apontar algumas hipóteses e, no máximo, fazer algumas indicações de possibilidades a se seguir. Porém, nesse texto, quebraremos um pouco as promessas feitas na frase anterior e já indicaremos em torno do que essa unidade deve se materializar: um programa. Não um programa abstrato, raso, insípido, incolor e inodoro, mas um programa fundado em bases marxistas, consequentemente, um programa revolucionário.

Na sequência desse texto introdutório, não apresentaremos um programa acabado, muito menos como fazer a sua própria revolução em dez passos. Apresentaremos três elementos da teoria marxista que julgamos fundamentais para o início de qualquer construção programática.

 

Fundamento da sociedade capitalista

Acreditamos na existência de um certo consenso de que vivemos em uma sociedade capitalista, embora o que isso signifique exatamente não seja um consenso. Por isso, todas as nossas análises nesse espaço terão como pressuposto o legado teórico que Marx nos deixou em sua obra O capital, mais especificamente a partir da seção II – A transformação do dinheiro em capital -, momento em que o filósofo alemão deixa de analisar elementos que não são capital e passa a se ocupar em analisar as especificidades do modo de produção capitalista.

Isso não diminui em nada a longa explanação do autor na seção I, pelo contrário, sem a apreensão dos conceitos como mercadoria, valor de uso, valor de troca, valor e dinheiro – e suas diversas utilidades antes de se tornar capital -, não teríamos como entender o movimento de valorização do valor (D-M-D’), também conhecido pela alcunha de capital.[2] Porém, para o presente texto, é fundamental a compreensão de que a o fundamento de uma sociedade capitalista é a produção de capital e, consequentemente, a produção de mais-valia[3]. Desta forma, qualquer programa que se pretenda anticapitalista, deve ter como primeiro pressuposto que essa superação só se concretizará no momento em que o capital deixar de se reproduzir, ou seja, quando o capitalista não mais conseguir extrair a mais-valia da força de trabalho do trabalhador.

 

Classes sociais

Esse segundo elemento da teoria marxista com certeza não é nem um pouco consensual. Portanto, qualquer posição ou suposição apresentada fatalmente se tornará uma polêmica. Desta forma, iniciaremos a nossa polêmica pelo lugar comum desse debate, o Manifesto comunista. Dentro do campo marxista não há como negar duas máximas dessa obra: 1) que a história de todas as sociedades existentes é a história da luta de classes e 2) que a sociedade capitalista simplificou os antagonismos de classes – importante destacar o plural da afirmação -, se dividindo cada vez mais entre dois polos opostos, a burguesia e o proletariado. É pela segunda máxima que a polêmica se inicia. Essa afirmação da simplificação dos antagonismos de classe só pode ser compreendido com todo o seu potencial revolucionário quando colocada junto de obras posteriores de Marx. Para esse artigo, iremos nos basear nas obras As lutas de classes na França – atendando para o uso do plural -, O 18 brumário de Luís Bonaparte e, principalmente, O capital.

Nas duas primeiras obras citadas, é possível perceber que em momento algum Marx resume as classes sociais na sociedade capitalistas apenas à burguesia e ao proletariado. É possível ver nos eventos analisados na França que diversas classes e, principalmente, frações de classes colocam seus interesses em disputa seja nos aparelhos estatais, seja nos eventos revolucionários. A compreensão da simplificação dos antagonismos de classes só se torna evidente no momento que entendemos a relação entre trabalho necessário e trabalho excedente na extração de mais-valia da força de trabalho. O antagonismo é simplificado, pois, as duas classes que possuem interesses antagônicos na produção de mais-valia – relação central no modo de produção capitalista- são de um lado a burguesia – buscando extrair o máximo possível de trabalho excedente – e do outro o proletariado – buscando trabalhar apenas o necessário para reproduzir a sua força de trabalho e emancipar o desenvolvimento das forças produtivas.

Todos os demais antagonismos de classes ou frações de classe não tem que necessariamente encontrar o seu desfecho além dos limites do capitalismo. Dessa forma, um programa, mais que eleitoral, mas político e  que se pretende revolucionário deve saber quais os limites de suas propostas, quais propostas podem realmente agir na raiz do problema – diminuir a jornada de trabalho, por exemplo, que seria uma diminuição da mais-valia absoluta – e quais propostas ajudam a acumular forças – taxar grandes fortunas, por exemplo, que não questiona a produção de mais-valia, apenas visa distribuí-la socialmente e, consequentemente, não significa grandes empecilhos para a manutenção do modo de produção capitalista.

 

Estado e revolução

Por fim, aproveitando os dois exemplos anteriores, entramos no último elemento que deve ser levado em conta na elaboração de um programa revolucionário: o papel do Estado. Para além da definição já consagrada por Engels n’A origem da família, da propriedade privada e do Estado, de que o Estado é algo que surge de dentro da sociedade para ficar acima da sociedade quando as lutas de classes se agudizam e que é um instrumento da classe dominante, é preciso prestar atenção na análise do Estado capitalista feito por Marx nas obras As lutas de classes na França, O 18 brumário de Luís Bonaparte, Guerra civil na França e Crítica ao programa de Gotha. Na trilogia sobre a França, Marx demonstra como o regime republicano é a melhor forma de se organizar o Estado no modo de produção capitalista, principalmente por permitir as disputas entre as frações da burguesia no interior do próprio Estado. Essas disputas entre as frações permitem por vezes que outros interesses se manifestem nesse regime – e o próprio regime republicano já possui seus mecanismos para quando interesses muito diversos dos interesses burgueses se manifestam. Mas enquanto esses mecanismo não se manifestam, é possível que outra classe, inclusive o proletariado, consiga alguns avanços, por isso um programa revolucionário não deve contar apenas com a revolução, mas ver formas de se aproximar dela também.

Já com relação à Crítica ao programa de Gotha, em uma carta para Wilhelm Bracke, Marx é categórico ao afirmar que mesmo os passos do movimento real serem mais importantes que os programas, quando não é possível dar o passo, os programas são importantes para medir o avanço do movimento. Assim, buscar formular um programa que vise a realização de uma revolução mais do que dar uma receita, serve para saber qual vai ser a adesão do movimento real quando for a hora.

 

Conclusão ou prólogo

Não pretendemos em um espaço tão curto ter a pretensão de indicar um caminho a se seguir cegamente. Não negamos que temos muito mais dúvidas do que certezas e esse é um debate que está longe de acabar. Porém, julgamos esses três elementos imprescindíveis para o início de um debate acerca de um programa que se pretenda revolucionário. Podem, e devem, existir outros, por isso apresentamos esses três para começar esse hercúleo debate que é dever de todos marxistas travarem da forma mais honesta e profunda possível.

Existir um programa, então, e mais que isso, existir um programa revolucionário que se paute nas relações fundamentais do capitalismo, na luta de classes e no papel do Estado, torna-se uma obrigação para a esquerda. Ainda, defendemos que essa não deve abrir mão desses preceitos em favor de unidades eleitoreiras. Caso contrário, teríamos de admitir que, por mais que se reivindique como aquela responsável pela não manutenção da ordem social vigente, estaria a esquerda objetivando conquistas puramente eleitorais e não revolucionárias. E isso, com certa dose de sarcasmo, certamente sabemos que não é o proposto.

Matheus Garcia

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[1] Para maior aprofundamento, ler o artigo Porque ser anticapitalista pode não significar avanço nenhum, de Gabriel Martins.

[2] Caso tenha interesse em ampliar a discussão, o grupo Estudos Marxistas possui cursos que abordam este tema.

[3] Consideramos a falsa polêmica entre a utilização de mais-valia ou mais-valor desnecessária e, assim, partimos do pressuposto que mais valia estudar O capital do que perder tempo com polêmicas desse tipo.