O Centenário da URRS e a revolução
No centenário da criação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), mais do que a celebração (justa e necessária), cabe a reflexão dos marxistas acercada maior experiência socialista no século XX. Nesse sentido, buscaremos fazer breves apontamentos sobre a relação entre Estado e Revolução e qual foi o papel do Estado soviético enquanto grande experiência prática para a classe trabalhadora.
Na obra A guerra civil na França, Marx define a ascensão dos trabalhadores franceses ao controle da cidade de Paris como “[…] uma revolução não contra essa ou aquela forma de poder estatal, seja ela legítima, constitucional, republicana ou imperial. Foi uma revolução contra o Estado mesmo, este aborto sobrenatural da sociedade, uma reassunção, pelo povo e para o povo, de sua própria vida social. Não foi uma revolução feita para transferi-lo de uma fração das classes dominantes para outra, mas para destruir essa horrenda maquinaria da dominação de classe ela mesma. Não foi uma dessas lutas insignificantes entre as formas executiva e parlamentar da dominação de classe, mas uma revolta contra ambas essas formas, integrando uma à outra, e da qual a forma parlamentar era apenas um apêndice defeituoso do Executivo.” (p.127).
E prossegue “A Comuna – a reabsorção, pela sociedade, pelas próprias massas populares, do poder estatal como suas próprias forças vitais em vez de forças que a controlam e subjugam, constituindo sua própria força em vez da força organizada de sua supressão –, a forma política de sua emancipação social, no lugar da força artificial (apropriada por seus opressores) (sua própria força oposta a elas e organizadas contra elas) da sociedade erguida por seus inimigos para sua opressão.” (p.129).
Dessas duas passagens fica evidente que para Marx, a Comuna era o polo oposto do Estado burguês. Marx afirma que a Comuna deveria destruir o Estado. A experiência da Comuna não foi apenas a primeira tentativa dos trabalhadores tomarem os céus de assalto, foi, principalmente, a primeira forma de organização social – desde a consolidação da divisão entre trabalho manual e trabalho espiritual, como conceituado pelos cofundadores do socialismo científico n’A Ideologia Alemã – em que o objeto não era a manutenção de uma divisão artificial do trabalho em beneficio de uma fração da sociedade, mas sim consolidar as condições objetivas para construção de uma sociedade em que os trabalhadores fossem livremente associados.
Mas essa leitura de Marx pode nos levar, erroneamente, que há uma divergência entre Marx e Lênin, afinal, a fórmula clássica que extraímos da obra O estado e a revolução do líder da Revolução russa de 1917 preconiza a tomada e o definhamento do Estado. Para tentar dissolver essa suposta contradição entre os autores, vejamos o texto A falência da II Internacional escrito por Lênin em 1915. Nesse texto, é caracterizada a chamada situação revolucionária e Lenin lista três condições fundamentais para isso: 1) crise das cúpulas; 2) aumento da miséria das massas; e 3) ação histórica independente. Essa ação histórica independente se materializou na Rússia czrista com os soviets. E um discurso proferido em junho de 1917 no I Congresso dos Sovietes de Deputados Operários e Soldados de Toda a Rússia, Lênin faz a seguinte caracterização: “Os Sovietes são uma instituição que não existe em nenhum dos Estados burgueses parlamentares de tipo corrente, e não pode existir ao lado de um governo burguês. É o tipo novo e mais democrático de Estado, ao qual nós, nas resoluções do nosso partido, dávamos o nome de república democrática camponesa-proletária, na qual o poder pertence exclusivamente aos Sovietes de deputados operários e soldados.”. Não restas dúvidas que para o líder bolchevique, os sovietes já são uma nova forma de Estado que se diferencia não apenas do Estado czarista, mas também de qualquer forma de Estado burguês.
Assim, em 30 de dezembro de 1922 quando os delegados das diferentes federações aprovaram o Tratado de criação da União soviética, eles não estavam legislando sobre como definhar o Estado czarista recém conquistado. Eles estavam atestando o fim do antigo Estado e sua imediata substituição por um Estado essencialmente proletário, fruto das experiências dos sovietes. Esse estado essencialmente proletário que deveria definhar até a construção de uma sociedade dos trabalhadores livremente associados. A experiência da construção da União Soviética, com seus erros e acertos, foi uma síntese na prática das elaborações de Marx e Lênin acerca não apenas do Estado, mas, sobretudo, da Revolução enquanto a retomada do controle da vida social do povo e pelo povo.