Futebol, o ópio do capital: apontamentos sobre a relação entre a Superliga e acumulação capitalista

29/04/2021 18:21

Na segunda metade de abril de 2021, o mundo do futebol, o mais popular esporte do mundo, foi surpreendido com a notícia de que alguns dos maiores clubes europeus iniciariam uma nova liga continental. Como argumentos favoráveis, foram elencados elementos como a crise econômica causada pelo esvaziamento dos estádios diante da pandemia global e a independência dos clubes perante as corruptas confederações do esporte, enquanto que os opositores da iniciativa, como os treinadores Guardiola e Bielsa, apontaram o caráter antidesportivo de uma liga em que apenas alguns convidados disputariam um torneio de altíssimo nível técnico e com potencial econômico imenso.

O que ninguém falou de fato são os fundamentos da iniciativa, a dizer os aspectos econômicos e suas consequências desportivas específicas a partir desta iniciativa. Quanto aos aspectos econômicos, o marxismo tem uma contribuição ao tema. Para isso, neste texto apresentaremos um panorama geral daqueles que ficaram conhecidos como seus proponentes e executores da proposta: os supertimes europeus, seguido de uma análise do verdadeiro proponente da Superliga, a instituição financeira JP Morgan. Com isso, buscamos exibir brevemente os fundamentos econômicos da liga proposta para, por fim, apontarmos as consequências e os limites das análises favoráveis e contrárias a esta nova e frustrada tentativa capitalista de monopolizar o futebol nas mãos de um pequeno grupo de capitalistas financeiros.

 Da Copa dos Campeões à Liga dos Campeões

O futebol é o mais popular esporte do mundo, mas também é um dos maiores negócios do capitalismo contemporâneo, movimentando bilhões em uma cadeia de valor global. A partir da década de 1990, esse esporte tomou o rumo tradicional de negócios capitalistas, como Marx demonstra ao final do livro primeiro d’O Capital: concentração e centralização. Formaram-se, a partir da Lei Bosman (1995), verdadeiros esquadrões mundiais, com equipes mais fortes que as melhores seleções nacionais.

Os supertimes formados no princípio do novo milênio passaram paulatinamente a superar torcidas locais em diversos lugares do mundo e a monopolizar os campeonatos nacionais e mundiais. O crescimento do negócio e monopólio europeu dá um salto em 1992 quando a antiga Copa dos Campões é substituída pela lucrativa Liga dos Campeões, ambas organizadas pela Federação Europeia de Futebol (UEFA).

A demanda por um novo modelo de campeonato continental deveu-se à necessidade de comportar os supertimes concentrados em somente 5 ligas nacionais em uma Copa dos Campeões que antes somente aceitava o campeão de cada país. Com isso, a Copa do Campeões tornou-se o maior campeonato de futebol do mundo, a Liga dos Campeões, movimentando um volume de capital semelhante a Copa do Mundo e com expectativa de superá-la em breve.

A partir de 1995, o crescimento econômico das equipes europeias abriu o mercado efetivamente para supertimes, com a Lei Bosman, e a regulamentação do trabalho de jogadores de futebol enquanto trabalhadores comunitários europeus, permitindo um maior número de atletas de muitas nacionalidades. Com isso, equipes com grande capacidade de captação de recursos formaram verdadeiros esquadrões globais, com os melhores atletas do mundo inteiro.

A consequência econômica culminou em campeonatos monopolizados por poucas equipes e a redução da competitividade nacional, continental e mundial, com a América do Sul praticamente não tendo mais chances de vencer o torneio mundial, antes com pequena vantagem às equipes desta região.

Mas os supertimes, que não são os maiores vencedores, nem mais tradicionais, ou mesmo aqueles de maiores torcidas, mas tão somente os mais ricos clubes de futebol do mundo e que, em sua maioria, se tornaram propriedade de grandes grupos monopolistas e com capacidade de investimento, devido à superacumulação capitalista desses mesmos grupos. Essas equipes centralizaram, então, os grandes jogadores, treinadores, preparadores físicos, analistas de desempenho e instalações para treinamentos e jogos em cerca de uma dezena de clubes.

E são esses clubes com grande volume de capital para investimento e atração de capital que têm enfrentado problemas com os limites de investimento impostos pela UEFA – conhecidos como fair play financeiro – que demandam por um novo formato do maior campeonato de futebol de clubes do mundo, a Liga dos Campeões.

O novo formato demandando, segundo os supertimes europeus, deveria priorizar jogos entre essas grandes equipes visando competir com os demais produtos de entretenimento mundial, como outros esportes – lembrando que o modelo proposto é muito utilizado por ligas norte-americanas, porém o contexto de implementação desse modelo na América do Norte remete ao período de profissionalização do esporte atrelado aos interesses de uma capital produtivo em expansão, mas esses detalhes ficam para um debate futuro -, jogos eletrônicos, filmes e séries. Buscando aumentar a fatia de mercado que o futebol consegue alcançar, não somente novos campeonatos, mas talvez um novo esporte, ou melhor um novo entretenimento passa a ser objeto de especulação daqueles que se habituaram a especular com dinheiro, pois, lembremos, grande parte desses clubes são empresas com ações na bolsa e proprietários de grandes conglomerados monopolistas, alguns deles já com experiência e propriedade de equipes das ligas profissionais norte-americanas.

Mas antes de chegarmos às consequências que os gigantes financeiros por detrás dos supertimes prometem ao futebol, vamos analisar as determinações econômicas da nova liga proposta e quem de fato a financiou.

 

Superacumulação e o futebol de esporte a entretenimento: da Liga à Superliga

Ainda que esses supertimes dominem o futebol mundial, com sua capacidade de unir grandes esquadrões em campo e equipe técnica como suporte, os limites de investimento e de faturamento com jogos contra equipes menores se impõe como um limite esportivo em detrimento de um limite à reprodução de capital, como a divisão de cotas de venda de direitos de transmissão e os sempre incertos prêmios em dinheiro por desempenho desportivo.

Mas por que esses grandes grupos monopolistas almejam ampliar a capacidade de investimento? Ao contrário do que o treinador argentino Marcelo Bielsa falou à imprensa inglesa, onde atua, não é ganância dos mais ricos querendo ganhar sozinhos em um campeonato sem os menores que movimenta esta iniciativa.

Para respondermos a essa pergunta, temos de entender o que fez com que grandes grupos monopolistas ingressassem, em primeiro momento, no investimento em futebol. É notório entre o público esportivo que esses grandes grupos estariam arriscando seu capital no mercado futebolístico como forma de legitimar monarquias ou negócios que que degradam a natureza, ou como mera lavagem de dinheiro. Que existam interesses políticos ou negócio escusos nesse meio, não nos resta dúvidas, mas o fundamento econômico do ingresso de grandes investidores no futebol tem relação com um fenômeno apresentado por Marx em seu póstumo livro 3 d’O Capital: a superacumulação de capital.

Com a crescente monopolização da acumulação privada de valor socialmente produzido, os grandes grupos capitalistas precisam buscar por novas formas de investimento. Por isso vemos não somente monopólios na maior parte das grandes cadeias produtivas de valor, mas grupos monopolistas dominando mercados completamente distintos, como produtos de higiene e produtos de limpeza.

O que faz com que um grande grupo capitalista varie seu mercado de atuação é esse processo chamado superacumulação, que ocorre quando um grupo capitalista acumula tanto capital em seu ramo inicial de atuação que não tem mais condições de valorizá-lo neste ramo, tendo de procurar outro.

Esse fenômeno, um dos determinantes das crises periódicas capitalistas, as quais têm se intensificado nos últimos anos, confirmando a tendência já identificada por Marx no final do século XIX. Com isso, o limite de investimento no mercado futebolístico e a divisão tendencialmente equilibrada dos campeonatos europeus, sobretudo na mais rica liga de futebol do mundo, a inglesa, tem atuado como barreira à valorização do valor que caracteriza o movimento do capital.

Por esse motivo, o JP Morgan, terceiro maior conglomerado financeiro do mundo ofereceu um empréstimo de aproximadamente 23 bilhões de reais a cada um dos doze  clubes mais ricos do mundo como forma de convencê-los a ingressarem em um novo campeonato, a “superliga”,  controlado pelos próprios times e com a promessa de receberem todos os altos valores que se espera de um campeonato deste nível após os clubes realizarem o pagamento do empréstimo, que seria efetivado pelos lucros da competição, transferidos à JP Morgan até a dívida ser quitada. Ou seja, não há a garantia de um grande sucesso esportivo, mas há a garantia de pagamento de uma bilionária dívida a um dos maiores grupos de investimento do mundo, que emprestaria uma cifra exorbitante às mais solventes equipes do mundo, portanto, com grande capacidade de retornar esse investimento.

 

A superliga é só o início

O desespero de encontrar novas formas de valorização de capital expresso pela JP Morgan é somente a ponta do iceberg da grande crise financeira global que se caracteriza não pela escassez decorrente do menor consumo na pandemia, mas, sobretudo, pelo excesso de capital retido pelos grandes grupos capitalistas que não encontram opções de investimento. Com isso, nem mesmo o rentável futebol europeu é suficiente para esse volume, ao que a JP Morgan ousou e ofertou uma cifra exorbitante em um momento em que os clubes têm dificuldades de manter seus astros globais com a redução de receitas da lucrativa bilheteria europeia, de estádios sempre cheios.

E as consequências desportivas vão muito além dos clubes mais ricos do mundo monopolizarem um campeonato disputado por somente este grupo. Ao situar o futebol como uma das mercadorias que buscam ser realizadas no mercado de entretenimento, o presidente do Real Madrid e presidente da fracassada nova liga apontou que o futebol concorre com outros produtos e que é não somente necessário buscar maior atratividade da nova geração com grandes jogos mais frequentes, mas quem sabe com algumas mudanças no próprio esporte, como o tempo de jogo, considerado muito longo pelo público mais jovem. Ou seja, não é somente um grupo de supertimes que não quer dividir a fatia com os clubes menores, mas um grupo de capitalistas que adquiriu os maiores times do mundo, tornou-os praticamente insuperáveis e busca não somente criar um novo produto futebolístico, mas um novo esporte a partir do futebol, com mudanças nas regras que possam ser definidas por investidores e não por confederações que reúnem, além de grandes corruptos, ex-atletas e outros apaixonados pelo futebol como esporte e que comercializam seu valor de troca enquanto mercadoria sem alterar seu valor de uso enquanto esporte tradicionalmente desenvolvido e pouco modificado em sua forma de jogo pelo movimento global do capital.

Essa nova liga é, portanto, mais que uma concentração de riqueza, mas um avanço do capital sobre um esporte tradicional mercantilizado, mas ainda sem controle total do capital financeiro e sua necessidade de se reproduzir em meio a uma grave crise de superacumulação. Por enquanto, fracassa, mas as cifras disponíveis não investidas pelos supertimes continuam à procura de uma nova valorização sem pensar nas consequências culturais, desportivas, sociais, ecológicas, humanas, etc. apenas atendo-se a se valorizar enquanto capital.

 

Gabriel Martins e Matheus Garcia

Estudos Marxistas

 

Para saber mais indicamos a leitura d’O Capital até o livro 3, quando Marx melhor exibe a superacumulação de capital, além da leitura de Imperialismo, fase superior do capitalismo, de Lênin, e Acumulação de Capital, de Rosa Luxemburgo.